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Stallone Cobra – Os Excessos Necessários Para a Manutenção da Ordem


Stallone Cobra é um filme de 1985, dirigido por George Cosmatos, estrelando Silvester Stallone no papel de Marion Cobretti, um policial linha dura da cidade de Los Angeles, que precisa parar os planos de um grupo neonazista. Eu creio que este filme expressa de forma clara determinadas características do cidadão ideal e do inimigo ideal. É necessário, desta forma, separar algumas características do filme, dos personagens e de toda a organização e dinâmica entre eles, para explicar melhor a representação de cada um dentro do longa-metragem.
O Esquadrão Zumbi
Definir o Esquadrão Zumbi somente como parte da polícia seria um erro. Eles são articulados com a polícia somente por serem a manutenção da ordem vigente, entretanto, eles ultrapassam o próprio aparelho policial. A polícia tem limites, o Esquadrão Zumbi é onipotente. Umas das preocupações do departamento policial em relação à forma de combater ao grupo nazista que aterroriza a cidade de Los Angeles é não ser pego pela corregedoria. Cobretti é sempre evitado por ser violento, por utilizar métodos autoritários para eliminar o inimigo, a recusa por Cobretti é a recusa de uma sanção, é a conformação com os limites impostos pelo aparelho burocrático estatal. Isso nos leva a um ponto: o departamento de polícia, desta forma, não é menos violento, ou menos alucinado que Cobretti, eles só são submissos ao poder coercitivo do Estado. O monopólio da violência é poder do Estado, não do depto de polícia, este, por sua vez, é a ferramenta democraticamente utilizada para exercer a violência.
A chave da submissão dos policiais ao sistema burocrático que autoriza sua ação é o fato do Estado ser democrático e, portanto, nunca agir de maneira arbitrária. O Estado precisa respeitar os direitos individuais que ele mesmo postulou, direitos sagrados numa sociedade moderna liberal.
Desta forma, o Esquadrão Zumbi não está dentro do aparelho estatal, entretanto, sua ação é totalmente voltada para a manutenção da ordem, então não se pode dizer que está fora do Estado. É importe dizer que o Estado, sob a forma de aparelho estatal, é a forma de um determinado grupo, que detém o poder estatal, se utilizar dos aparelhos estatais, como a polícia, a escola e a igreja, para disseminar sua ideologia, a legitimar teoricamente e a garantir pela repressão. Esta perspectiva Althusseriana do Estado nos permite identificar o Esquadrão Zumbi como parte do verdadeiro aparelho repressivo. Enquanto a polícia age sob as normas do Estado, sob a moral liberal e sob os preceitos básicos de respeitos aos direitos humanos, como na cena do roubo ao supermercado, onde a tentativa da negociação é falha, porém, a presença de Cobra, o [chamemos, por enquanto] fora-da-lei, também não é bem-vinda, mesmo sendo a única opção. O Cobra é necessário, mas não apreciado.
Ao ultrapassar os limites do sistema para aplicar a lei ou, até mesmo, para realizar o ato socialmente aprovado, como matar o ladrão, Cobra (e todo o Esquadrão Zumbi) agem como um excesso do sistema. Ele não deixam de ser parte integrante dos aparelhos estatais, porém, sua função é ser o aparelho informal. Ele é a nuvem coercitiva da sociedade, é o que garante a sanção social. Por outro lado, ele não sofre sanções, não liga para nenhuma tipo de corte que possam fazer em relação ao seu poder. O Esquadrão Zumbi é um excesso permitido e, ao mesmo tempo, envergonhador do sistema vigente. Mas não é qualquer um que pode fazer parte deste grupo necessário, é preciso ter certas características básicas.
Marion Cobretti, ou Como Coincidir a Rebeldia e o Conservadorismo
A encarnação de Cobretti num policial durão não poderia ter sido melhor. Ele é o estereótipo perfeito do calmo cidadão-de-bem que trata com dureza os assuntos ligados à moral; porém, com ele, se muda o objeto: não se trata da moral, mas do respeito a um só direito, o da liberdade individual. Não se resume ao direito de ir vir, mas também os direitos que são relacionado ao usufruto individual, como o livre-comércio ou o livre-usufruto de uma acordo contratual – representado pela cena em que ele empurra, autoritariamente, o carro que estava em seu lugar no estacionamento e rasga a camisa do motorista enfurecido que foi tirar satisfação. Empurrar o carro tem duplo significado, é uma afronta à norma, uma agressão aos princípios básicos de educação ou cidadania, mas é a impressão autoritária de outra norma, além de ser a tentativa de educar pela força, pelo tapa, pela agressão. Esta tentativa é afirmada pelo filme como útil, ao mostrar o motorista do carro, em outra cena, se retirando com o rabo entre as pernas do lugar de Cobretti. A regra foi internalizada, o ato de desrespeito não aconteceu – isto é considerado como bom, funcional, mesmo que para acontecer, seja necessário que haja uma transgressão (a transgressão expressa a autoridade do agente. Cobra pode ser autoritário, está acima dos direitos e da moral que defende).
O excesso representado por Cobra e já explicado anteriormente, além da sua auto-intitulação como a cura, como a cartada mestre em um jogo truncado, além do tratamento que recebe dos outros policiais e da oposição que forma com o oficial Mont, já o coloca num saco de conservadoria sem fim. Porém é interessante falar sobre o oficial Mont.
No fim dos anos 80, pós-movimentos de contracultura, com a tolerância pela diversidade já tendo um berço teórico maior, e, principalmente, após a Segunda Guerra Mundial, e o terror do autoritarismo fascista anti-democrático, a tendência liberal foi se embasar nos direitos humanos como faixa de destaque para qualquer política. Mont representa este aspecto da realidade (que ainda persiste). Ele tende a negociar, à evitar a violência, ele quer prender o ladrão civilizadamente, enquanto Cobretti só quer se livrar do ladrão. Mont quer fazer sua parte, enviar o ladrão para o julgamento, enquanto Cobretti não acredita em juizes – conforme a cena da saída de Ingrid, a modelo que viu o rosto do assassino, da cidade, onde ela pergunta sobre a permanência dos bandidos nas ruas, e Cobra responde “Pergunte aos Juizes”.
Mont é parte do sistema burocrático que impede a ação de pessoas como Cobra, sendo ele próprio (o Cobra) acima deste sistema, não o respeita e não acredita em sua autoridade.
A oposição Mont X Cobra pode ser descrita como a oposição entre a abrangência do status de ser humano individual à todas as unidade biológicas humanas X a noção de unidade social iluminista, onde o humano só o é se se enquadrar em determinadas regras prescritas pela sociedade vigente. Em todo o filme, Cobretti não perde a paciência nenhuma vez, mesmo assim é tachado de violento, mesmo assim tem a reputação de não conseguir controlar seu temperamento. Enquanto a moral vigente é a do respeito ao indivíduo, seja lá como ele for, e a vida prática não for traduzida para esta noção (e com isto eu quero englobar as estruturas políticas, econômicas e sociais), enquanto o problema for resolvido pela repressão de sentimentos sociais existentes que ainda fazem sentido, o liberal será o covarde fraco que não entende a frieza do mundo e Cobra permanecerá como o rebelde, como aquele que desafia à moral vigente, mas disfuncional, entretanto, retornando à princípios superados. Em analogia, Cobra é um Superman, um sujeito retirado das leis que regem todos os outros.
O Herói Conservador
O Superman é um herói de outro planeta, que tem a mesma forma física e estrutura de um ser humano qualquer, desta forma, tornar-se um indivíduo não é tão difícil, digo, tornar-se um ser humano digno de reconhecimento não é tão difícil quanto o mesmo para um Tusken Raider, habitante do planeta Tatooine, do Star Wars. A sua aparência comum, até mesmo próxima (por que, oras, ele é tão igual quanto o ideal de homem para os Estados Unidos), transborda a sua realidade biológica – para ser um super-homem é necessário ser homem e ser super (relacionado com o “homem”). Então o super homem precisa ser encaixado dentro da categoria “homem”, e precisa superar as características extra-sociais da categoria. Ele precisa ser e não ser homem, ou, em outras palavras, ele precisa ser o excesso de ser homem.
Como deve ser o super-homem? Ele deve quebrar as leis da física, que, imperiosamente, massacram os pobres humanos comuns. Mas as leis da física não dependem do sujeito que nela está imerso, a situação se inverte: o sujeito que está imerso nas leis da física depende delas e não pode escolher obedecê-las ou não. Ciência é determinística. Então por que o Superman é classificado como o homem que quebra as leis da natureza? Exatamente por ser homem! E por que ele é homem? Pelo reconhecimento de um indivíduo na categoria homem depender de determinados aspectos, como cor da pele, quantidade de membros, linguagem compartilhada entre outros, porém, não é necessário a análise da constituição biológica – ela é deduzida das outras características.
O super-homem excede o homem sendo o homem, o seu excesso não retira a característica de “homem”, ele é também um homem. Logo, Cobretti não é um ser externo ao sistema que protege… Muito pelo contrário, ele faz parte, se reconhece e é reconhecido como parte do sistema, sua auto-identificação é tão grande que precisa ser mais do que somente um participante passivo, ele precisa agir fora do sistema para mantê-lo (isso não significa que ele não faz parte do sistema, mas sim que sua posição é inusitada, ele é o excesso necessário à sobrevivência do sistema).
Como manter a ordem num sistema liberal? Agindo conservadoramente. Basta não permitir que o liberal seja liberal ao ponto de agir contra o liberalismo: são dadas as opções, entretanto, se diz qual é a certa e qual é a errada. A resposta errada é sempre coberta de um mar de opressão – a sanção é eminente. Portanto, não há real escolha, a escolha é transportada para um contexto onde uma das opções tem uma trama de coercitividade a enlaçando. Cobra é aquele que irá aplicar as sanções, é ele que dá objetividade à escolha, ele que a faz ser direcionada e é ele que a generaliza. Seu poder cobre toda a sociedade. Mas todo herói só existe se há algo a ser combatido, caso contrário, seu poder seria perigoso, o totalitarismo estaria à espreita.
Os Assassinos da Noite
O inimigo do herói precisa ser identificável, não é necessário que seja seu oposto aparente, mas que tenha um núcleo oposto. Os assassinos nazistas que assolam Los Angeles preenchem esse perfil. São sujeito unidos em um clã, que se entregam ao ideal deste grupo da mesma maneira que, nas antigas sociedades, os velhos se suicidavam quando percebiam não ser mais úteis. É um grupo que se diferencia do Cobra pela dependência exagerada a uma consciência coletiva. Ao contrário de Marion Cobretti, que representa o indivíduo numa sociedade de alta divisão do trabalho, liberal e individual, o grupo de assassinos está imerso em uma rede simbólica que cobre a totalidade de suas vidas – até mesmo a noção de pessoa é afetada. Eles são a manutenção de uma coletividade que, numa sociedade líquida, não faz mais sentido. São fascistas coletivistas, Cobra é liberal individual. Esta é a oposição básica de o que Cobra representa e o que o grupo pretende.
As ações deste grupo são todas feitas em conjunto, em suas cerimônias, símbolos de união, como o estalar dos machados em conjunto, demonstram a ligação que há entre cada membro com o grupo. Existe, ainda, a ligação concreta e aparente com um referencial moral, o indivíduo é, portanto, a expressão desse referencial. Não é produtor de individualidade, é a manifestação do referencial através de sua unidade individual. Porém, Cobra não está fora desta lógica. Se, pelo filme, os assassinos são opositores de Cobra por conta de sua dependência coletivista, não se imagina que Cobretti também é dependente, entretanto, sua dependência está relacionada com uma referência moral individualista. O fato de parecer que seu individualismo o retira de qualquer coletivismo é uma ilusão, pois a noção do ser individual é compartilhada da mesma maneira que a noção do referencial moral superior, exigido pelo grupo nazista. Aquilo que afasta o herói do bandido é aquilo que mais os aproxima.
Também é interessante a forma como o grupo atua: logo na primeira chamada jornalistica a respeito do grupo nazista percebe-se o caráter de inimigo, pois eles matam mulheres, executivos, imigrantes, idosos e estupram crianças. É o inimigo perfeito e a forma de opor o nazismo do liberalismo também perfeita. Além, claro, do comunicado quase profético de um retorno conservador fascista do assassino chamado Açougueiro, quando, pouco antes de morrer na luta contra Cobretti, revela que ele nunca poderá matá-lo, nunca matará o que ele representa, pois é a sociedade do Cobra que produz pessoas iguais a ele. O que vemos, hoje, na Europa? O que vemos nas ações politico-religiosas no Brasil?
Quando O Eu Se Torna Meu Inimigo
A dinâmica dos personagens e da história, assim como da representação de cada personagem dentro da lógica do filme não só revela Cobretti como o excesso do sistema liberal, defensor dos direitos humanos inalienáveis, defensor da democracia e etc, como também revela que seu oposto, o grupo nazista, não é tão oposto assim.
Cobra é, na verdade, a identificação perfeita dos nazistas. A luta entre Cobra e Açougueiro é a luta entre Eu e Eu Mesmo. É a luta entre o um lado bom e um lado ruim. A diferença é a direção do vetor, pois, enquanto Cobra encarna o herói, se identifica com os valores da ordem, o Açougueiro é o vilão, por realmente querer transformações drásticas neste valores e nas estruturas sociais correspondentes. No entanto, a forma de agir é a mesma. Ambos são formas extra-sistêmica, ambos são produtos últimos da sociedade em que vivem, mas seguiram caminhos éticos opostos. A defesa de uma sociedade individualista não faz de Cobra um cidadão individual pós-moderno, a forma como ele realiza esta defesa é autoritária e fascista. Cobra é a necessidade de um pouco de fascismo “bem orientado” para a manutenção liberal.

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